O teatro viaja com ela

Teatro D.Maria II

O teatro viaja com ela
Derman Gulmez chegou a Lisboa, vinda da Turquia, e já se imagina a trabalhar no teatro português

Gonçalo Frota

A vida nem sempre é feita de escolhas. Muitas vezes, são as circunstâncias acidentais que, com um toquezinho daqui e outro dali, vão dando ao destino a sua boa reputação. Derman Gulmez, jovem dramaturga turca de 36 anos, estava prestes a fazer a mala e a pôr-se a caminho da Noruega para estagiar com alguns dos maiores teatros do país quando a malfadada covid-19 se espalhou pelo mundo e levou ao encerramento compulsivo de fronteiras. Em vez da Escandinávia, confinou-se em Ancara. Depois, com a lenta passagem dos meses e o gradual regresso das viagens internacionais, recomeçou do zero o seu trabalho de procura por um lugar onde pudesse prosseguir a sua investigação académica e, ao teclar num motor de busca as palavras-chave “underground theatre” – uma vez que não estava a obter respostas de teatros nacionais –, foi desembocar no contacto de uma pequena estrutura em Lisboa. A experiência recente de se ter cruzado com uma participante portuguesa num workshop com jovens críticos de teatro, ainda na Turquia, deixara-a curiosa o suficiente com a cena experimental da cidade para arriscar enviar um email. Depois, foi só esperar que, do outro lado, alguém fosse movido por idêntica curiosidade, lhe abrisse a porta de casa e a convidasse a entrar.

E o convite lá chegou, confirmando a disponibildade para o seu projecto ser acolhido em Lisboa. Fora a breve descrição da cena portuguesa que lhe chegara no tal workshop, Derman “não tinha qualquer ideia sobre o teatro” que por aqui se fazia e faz. Chegou em branco. Mas bastaram uns meses para perceber que “aqui há muitas oportunidades se se quiser fazer alguma coisa no teatro”. “No meu país não é muito fácil”, compara, “porque embora seja licenciada em Dramaturgia não consegui encontrar trabalho durante dois anos. Em Portugal, é mais fácil chegar até às pessoas”. Não falando ainda português, Derman conseguiu, ainda assim, pôr rapidamente em marcha os projectos que desemalou em Lisboa. Aluna de doutoramento em Estudos de Género, encontra-se a estudar o cruzamento dessa disciplina com a escrita para teatro. E foi assim que dirigiu dois workhops com mulheres, um deles virado para a escrita teatral, o outro, no Largo Residências, trabalhado a partir do "teatro do oprimido”, método de Augusto Boal. “Falámos de conflito, como encontrarmos paz connosco e com aqueles que estão à nossa volta, e depois começámos a escrever algumas histórias.”

O tempo de Derman Gulmez em Lisboa é também passado nos seus exercícios de escrita – quando, ao fim do dia, o trabalho num restaurante, que ajuda a pagar as contas, lhe dá tréguas e ela consegue ainda reunir forças e imaginação para se dedicar, por exemplo, à peça de teatro (a sua terceira) que se encontra a aprimorar. “É uma peça para dois actores, acerca do renascimento de uma mulher que está a alucinar, e que está sempre a encontrar-se com várias mães em palco, porque a mãe dela morreu durante o parto”, resume.

Derman escreveu a sua primeira peça como exercício final do curso de Dramaturgia e assume como maiores referências para a sua escrita o teatro político de Brecht, o teatro existencialista de Beckett e os autores do teatro do absurdo. Mas quando fala de teatro político, que também gosta de encontrar enquanto espectadora, não se refere a peça didácticas ou que se proponham educar o público através de “uma mensagem”. Aquilo de que gosta é de subtexto político, de ligações que possam agitar a sua visão da realidade e levá-la a questionar o seu dia-a-dia.

Esta ligação vital ao teatro começou ainda na sua infância, como acontece com tanta gente que concretiza a atracção pelos palcos e se apaixona pela experiência colectiva de levantar as palavras da página, dar-lhes vida à frente de uma plateia e perceber que tem a liberdade de dizê-las de diferentes formas, relacioná-las com a sua vida, usar a ficção e as ideias de outros plantando-as no seu corpo e na sua voz, para que depois germinem em algo que pertence tanto a quem escreveu como a quem se lhe entrega. “Mas depois cresci e esqueci-me de que tinha feito teatro em criança e que tinha pisado um palco”, recorda Derman. “Só mais tarde, quando fiz parte de um grupo de teatro amador e quando, em 2015, fui para a escola de escrita para teatro e comecei a imaginar peças é que o teatro reentrou na minha vida.” A sua primeira peça, estreada em Ancara, enquanto exercício final de curso, “muito longa e muito política”, ganhou um prémio mas, devido ao seu teor sensível, “é muito difícil de apresentar na Turquia”.

Devido ao apertado cerco aplicado aos textos apresentados nos teatros nacionais turcos, a jovem dramaturga afirma que “os temas apresentados são sempre muito semelhantes”. E esta é uma opinião sustentada pelas muitas idas às salas enquanto foi estudante – bastando apresentar a identificação para, então, poder assistir gratuitamente aos espectáculos um pouco por todo o país, desde que houvesse cadeiras disponíveis em cada sessão. “E mesmo depois de terminados os estudos”, ri-se, “quando sabemos representar, podemos continuar a dizer-nos estudantes.” Em busca de uma outra liberdade artística e discursiva, diz Derman, o teatro turco está hoje a virar-se para “lugares mais pequenos e íntimos, onde se assiste não tanto às grandes tragédias, a Arthur Miller ou a Brecht, mas a monólogos, peças pequenas e mais pessoais”.

Foi também através destes espaços alternativos que Derman foi introduzida ao teatro que se faz por cá. Tinha acabado de chegar, em Outubro de 2021, o colega português que a recebeu passou-lhe o endereço de uma agenda online que agrega a programação de vários espaços e, cheia de iniciativa e coragem, partiu para a primeira aventura: assistir a 4:48 Psicose, de Sarah Kane, numa apresentação de três actrizes que decorria num apartamento, algures em Lisboa. Valeu-lhe que já estudara a peça, porque a sua relação com o português, ainda a dar os primeiros passos, criou uma natural barreira para a compreensão do texto que era dito em cena.

Com pouco dinheiro na carteira – uma estudante deslocada não tem vida fácil, como se imagina –, Derman sentou-se de novo em frente ao computador tentando descobrir como poderia aproximar-se do teatro português através de algum projecto capaz de entender o seu contexto particular. E foi assim que encontrou o Primeira Vez. A resposta que não tardou a chegar, aliás, surpreendeu a dramaturga, porque estava habituada a ser ignorada nas suas tentativas de comunicação com teatros nacionais e respectivos programas. Tudo acelerou e pouco tempo depois já se via sentada na Sala Garrett, do Teatro Nacional D. Maria II, diante de Paraíso, o capítulo final da trilogia A Divina Comédia de Dante Alighieri que a companhia O Bando tem vindo a apresentar. Se a língua continuava a ser um obsctáculo, Derman foi seduzida pela encenação, pela energia dos actores, pelos seus movimentos, pela coreografia dos corpos, pela comunicação com o público e por tudo o que acontecia em palco, graças ao minucioso trabalho visual sob a direcção de João Brites.

Ao Primeira Vez, Derman agradece esta ponte construída entre aqueles que, tendo vontade e curiosidade de entrar no edifício do D. Maria II, se retraem pelas mais variadas razões. À medida que os dias passam, Derman consegue agora imaginar-se a viver em Portugal, já fruto de uma escolha e não de um acidente de percurso. Mas apenas se conseguir largar a vida cansativa do restaurante e encontrar maneira de dedicar os seus dias ao teatro. Até porque se o teatro lhe abrir as portas, acredita, a língua saberá ir atrás.



Todos os Direitos Reservados ©Clube Somos Espectadores 2024
Desenvolvido por TMO Web Creative