Uma ilha vive em mim

Teatro D.Maria II

Uma ilha vive em mim

Uma ilha vive em mim
A cartografia emocional dos Açores pelo Teatro Meridional

Catarina Homem Marques

“Chamo-me Manuel e vivo numa ilha, ou uma ilha vive em mim.” Assim dizia uma personagem de “Os Piratas”, livro de Manuel António Pina que partilha com “Ilhas” – o espectáculo que estará em cena no Teatro Nacional D. Maria II de 13 a 23 de Janeiro – pelo menos um elemento essencial: a geografia.

É fácil identificar essa geografia feita de pedras negras, natureza bruta, sol e vento e chuva tudo no mesmo dia. Não bastasse o nome do espectáculo, “Ilhas”, haveria, para nos situar, o nevoeiro logo ao subir do pano, o som do mar e das baleias a concorrer com (ou a ser) a música, um touro que dança, ou palavras, poucas, trocadas com sotaque. Açores.

“Tens humidade na cabeça”, grita alguém. Mas quase nada se diz. Mostra-se, sente-se. Mais um imaginário do que o concreto, mais o poético do que o antropológico, mais a alma do que uma história. A ideia é que a palavra não seja neste palco “a principal forma de comunicação narrativa”, como explica Miguel Seabra, o encenador, na Folha de Sala do espectáculo.

Em mais esta criação de Miguel Seabra e Natália Luiza dentro do seu Projecto Províncias, o Teatro Meridional partiu aqui em busca do vulcão interior daquela identidade atlântica, tal como já tinha feito nas planícies do Alentejo ou nos verdes de Trás-os-Montes (desde 2004, e até chegar a “Ilhas”, o Teatro Meridional já apresentou neste contexto os espectáculos “Para Além do Tejo”, “Por Detrás dos Montes”, “Por Causa de Muralhas” e “Nem Sempre se Consegue Ver a Lua”). Mas mais do que desenhada a coordenadas de GPS ou medida a quilómetros, esta é uma cartografia emocional.

“Há uma lógica subjacente aqui, que é da permeabilidade. É como se entrasses pelo mar adentro com sapatos e as calças fossem ficando cada vez mais molhadas até que te molhas todo”, acrescenta Miguel Seabra. Também por isso, e antes de chegar ao momento de montar o espectáculo, os criadores e os actores (neste caso, cinco actores e uma bailarina – Ana Santos, David Medeiros, Emanuel Arada, Joana de Verona, Miguel Damião e Rosinda Costa) passaram por um período de residência nos Açores, em imersão sensorial. Daí nascerão as improvisações, de onde se chegará às emoções e, por via delas, ao destino final: “Isto não é teatro documental, isto é teatro poético”, explica Natália Luiza.

Procura-se, então, com os pés descalços, com a cara suja de preto, com o mar agitado ou calmo, uma identidade. “Quando falamos destas regiões colocamo-nos sempre como quem observa o lugar, mas sem a veleidade de tomar posse da sua identidade, com o respeito profundo de saber que é um dentro-fora.” Essa identidade é atlântica, é açoriana e é, tudo isso somado, portuguesa, mas não deixa nunca afinal de ser estrangeira. Se calhar nem para quem lá está. E não deixa também nunca de ser imprevisível, indomável, como a natureza, como os dias, como os Açores.

Assim, naquele vai e vem em palco, no contraste entre carinho e violência, nas dicotomias entre Deus e natureza, entre fundo e superfície, entre chegar e pedir a alguém que não se vá embora, temos “Ilhas” que podem também ser qualquer lugar. E em que, como convém, cada homem (e cada mulher, de lábios sujos de vermelho) pode ser também uma ilha.



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