Ó TEMPO, AVANÇA PARA TRÁS

Teatro D.Maria II

Ó TEMPO, AVANÇA PARA TRÁS

Ó TEMPO, AVANÇA PARA TRÁS
7, 0, 2, 10… está activado o modo cosmovisão do futuro. Abram-se os espaços.

Catarina Homem Marques

Viagens no tempo. Portais. Forças de resistência intergalácticas. Podia ser uma história de ficção científica, isto se a ficção científica tivesse por hábito incluir corpos negros nas suas visões de futuro (ou de passado). Não tem, mas “Cosmos”, a nova criação de Cleo Diará, Isabél Zuaa e Nádia Iracema, em cena no Teatro Nacional D. Maria II até 3 de Julho, existe também para agitar isso.

“Precisas de muita energia para conseguir tirar essa perspectiva negativa que o continente europeu ou o Ocidente sempre teve sobre o continente africano”, diz Isabél Zuaa na entrevista para a folha de sala. E essa energia parece subir toda ao palco com as dez “corpas” que dão vida a este espectáculo, que gritam e gargalham, que entram no ritmo e se suspendem, que batem com os pés ou brindam ao amor, que batem no peito com raiva mas também nos chamam para dançar.
A dominar o palco, acima de tudo o resto, ergue-se um enorme embondeiro. À primeira vista, pode parecer um cenário de morte, de corpos pendurados sem vida. Mas em “Cosmos” há que revirar a perspectiva, as expectativas, as ideias feitas: aquelas pessoas penduradas afinal renascem, afinal são fruta madura, afinal embarcam e regressam da viagem.

O caminho é da caminhante, dizem-nos. Ela que parte em busca de cura e libertação. A tua dor não é a minha dor, lembram-nos, mas há dores das quais ninguém pode fugir. Há jornadas que convocam um «processo colectivo de resgate», mas há também, sempre, o indivíduo – porque estas mulheres não têm de representar todas as mulheres, estes corpos negros não são todos os corpos negros, mas estão ali para ocupar espaços, abrir portas, bater portões.

“Resgatar” é a palavra de ordem neste segundo momento de um tríptico teatral iniciado antes com a peça “Aurora Negra”. Resgatar as mulheres que voltam da viagem, resgatar a auto-estima, resgatar o primeiro navio que partiu de Luanda para transportar escravos, resgatar o passado, o futuro, a memória – que pode ser celular, emocional, espiritual. Resgatar, em suma, a humanidade, usando para isso um tempo espiralar, com várias camadas, essa filosofia africana que nos faz ser em frente daquele palco também o Sankofa, o pássaro mitológico que avança a olhar para trás. “O tempo nunca foi uma linha.”

Em “Cosmos”, viaja-se então no tempo para tentar mudar alguma coisa que falhou enormemente lá atrás. E volta-se para uma festa de roupas garridas, entre o desafio e a esperança, enfrentando o banzo (esse vazio, essa nostalgia) com cabazes irónicos de oferendas e a possibilidade de uma nova cosmovisão para o presente e para o futuro.



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